‘Lente de Aumento’: PMs obstruem câmeras corporais em abordagens, e suspeitos acabam absolvidos por falta de provas
03/12/2024
Especial do RJ2 analisou quase 800 processos da Justiça do Rio de Janeiro que incluíram registros da atividade policial. Lente de Aumento: PMs cobrem câmeras e cometem agressões
Por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), desde 2022 todo PM do Rio de Janeiro é obrigado a usar uma câmera corporal. Os registros em vídeo da atividade da PM fluminense são tema da série “Lente de Aumento”, da GloboNews e do RJ2.
A decisão do ministro Luiz Edson Fachin destaca que um dos objetivos da medida é diminuir o número de mortes em operações. Mas, na prática, o que a lente vê ou deixa de ver depende da conduta de cada militar.
Para os policiais que trabalham corretamente, a câmera é uma proteção contra falsas acusações e a garantia que tudo foi feito dentro das regras. Mas há militares que cobrem a lente para cometer agressões, abusos e violações de direitos humanos.
Aliás, nesses casos em que não há o registro visual da abordagem, o abordado acaba inocentado na Justiça.
O 2º capítulo da série trouxe imagens exclusivas de uso indevido do equipamento. Um dos casos foi em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
Os PMs afirmam que um homem tentou fugir e acabou preso com 60 gramas de maconha e 90 gramas de cocaína. Já o acusado diz que não estava com drogas e que foi agredido pelos policiais com socos, chutes e enforcamento.
O perito da Polícia Civil comprovou que o preso tinha ferimentos pelo corpo, com lesões no rosto, ombro, braços e joelho.
A verdade deveria ter sido gravada, mas as câmeras corporais ficaram dentro da viatura. No processo, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) pediu as imagens e recebeu 5 horas de gravações que não mostram nada — mas havia o áudio.
“Sou morador, cara, eu sou morador! Calma aí, cara! Coé?”, diz o preso, que emenda um grito de dor.
“Tá resistindo, irmão? Bota a mão pra trás!”, ordena um PM.
“Calma, carvalho!”, emenda outro militar.
“Eu sou morador, cara”, suplica o suspeito, já ofegante.
“P*rra nenhuma!”, interrompe um PM.
Selo lente de aumento
GloboNews
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O promotor, responsável pela acusação, pediu a absolvição. Depois de 1 ano e meio na cadeia, o réu foi inocentado pela Justiça. O juiz do caso afirmou que “quando o Estado não fornece as imagens da abordagem, a versão da acusação perde o vigor inicial, pois não pode se sustentar exclusivamente na palavra dos policiais”.
Rogério Schietti, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirmou que a filmagem “não é, em si, a única prova possível num processo”.
“Na medida que você tem um processo em que surjam versões contraditórias, diferentes, a imagem vai solucionar essa dúvida. Então, se você não tem a filmagem, a Constituição diz que a dúvida sobre uma determinada prova vai se resolver a favor do réu”, detalhou.
Paulo Roberto Mello Cunha, promotor da 2ª Promotoria de Justiça junto à Auditoria Militar, explicou que nesses casos há a “negativa de obediência”.
“O Ministério Público chegou ao entendimento que o policial que, deliberadamente, dolosamente, ele não usa a câmera ou obstrui a câmera, ele incide no crime militar chamado “negativa de obediência”, que é justamente o policial se insurgir contra uma ordem de superior”, descreveu.
Esquina de Meriti onde houve ocorrência policial
Reprodução/TV Globo
Outro episódio foi no Conjunto Cesar Maia, na Zona Oeste do Rio. Um vídeo com a câmera encoberta é o único registro da prisão.
“Vocês não me espancaram à toa? Um trabalhador?”, questiona o detido.
“Você é vagabundo!”, responde o PM.
“Agora eu vou botar na Justiça vocês”, retrucou o homem.
“Você agarrou o fuzil. Fica aí que não acabou ainda não!”, falou o militar.
“Para, chefe! Para, vai continuar me espancando? Isso é covardia. Já apanhei muito!”, pediu o preso.
“Levanta, arrombado!”, reagiu o PM.
Mais uma vez, a Polícia Militar e o acusado de tráfico apresentaram versões diferentes. A Justiça avaliou que a ausência das imagens deixou dúvidas sobre o que realmente aconteceu, e o réu foi absolvido.
Há casos em que a câmera auxiliou os policiais. Uma equipe abordou suspeitos em uma boca de fumo, e um deles tentou resistir e foi contido. O Ministério Público avaliou que as imagens deixaram evidente que o PM utilizou a força necessária para contê-lo. As câmeras filmaram o tempo todo, o que resguardou a legítima atividade dos policiais.
A reportagem também exibiu a gravação de um PM atirando nas costas de um suspeito rendido. A abordagem ocorreu durante a perseguição a supostos assaltantes. A abordagem aconteceu na Zona Norte do Rio, durante a perseguição a supostos assaltantes que estariam agindo de carro.
Após o comando dos policiais, o motorista sai do veículo com as mãos para o alto. No chão, ele tenta se explicar. O suspeito se levanta e leva um tiro nas costas. Veja na imagem acima.
Na porta da delegacia, os policiais militares combinaram a versão que vai ser apresentada nos depoimentos.
"O senhor não mirou nele, o senhor mirou no veículo", diz um dos agentes.
Depois de analisar os detalhes da ocorrência, a Defensoria Pública pediu, e a Justiça determinou que o Ministério Público e a Corregedoria da corporação investigassem a conduta dos PMs.
Em depoimento, o réu confessou que roubou a bolsa de uma mulher naquela madrugada. Ele foi condenado a seis anos de prisão. A Polícia Militar informou que o sargento Daniel de Souza Braga foi "preventivamente afastado do serviço nas ruas" e que a Justiça e a Corregedoria da PM estão apurando o caso.
O que dizem os citados
Sobre os dois casos em que os PMs teriam obstruído as câmeras e cometido agressões, a PM informou que a Corregedoria instaurou um procedimento para apurar a conduta dos policiais.
Sobre o caso em que o policial dispara um tiro nas costas de um suspeito já rendido, além das investigações abertas pelo Ministério Público e pela PM, a corporação também informou que o PM foi afastado das ruas.
Nossa produção também questionou o MP sobre a equipe dedicada a apurar crimes militares de toda a tropa da PM. O MP disse que disse estudou criar uma nova promotoria para investigar crimes militares, mas que a demanda de trabalho das atuais promotorias tem se mantido estável e, por isso, não viu necessidade. Mas afirma que pode reavaliar as medidas caso haja um aumento significativo no volume de trabalho.
Sobre o fim do Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública, o Gaesp, extinto em 2021, o Ministério Público afirma que fez uma reestruturação e criou outros grupos de trabalho para fiscalizar a atividade policial.
O MP destacou, ainda, a redução de mais de 60% dos casos de letalidade policial nos dez primeiros meses de 2024 em comparação com o mesmo período de 2019.